criança torta

costumei a reservar um momento de tarefas domésticas em casa recentemente. tiro o lixo, limpo a poeira da estante do meu quarto, limpo o banheiro ao lado, cozinho e esquento algumas coisas, uso bem a máquina de lavar. consigo fazer tudo isso bem numa manhã para tarde. até aí, pareço uma pessoa eficiente. bom… só pareço mesmo.

dia desses, esqueci de pendurar as roupas no varal quando a máquina parou de bater a água com os tecidos, e lembrei na hora do meu jantar. também me lembrei de guardar a lasanha nesse horário, quando a esquentei algumas horas antes para almoçar. rememorei um pouco os meus deslizes, um pouco decepcionada comigo por não ter seguido com a minha eficiência, pois fiquei ocupada por toda a tarde com hiperfocos que não iam acrescentar muito na minha rotina, a não ser uma certa dose de satisfação.


"ah, mas você fez muito pela sua casa." não foi o que eu senti no primeiro momento. eu só senti que poderia ter feito mais e não ter me deixado levar. tentei lembrar que pendurei a roupa, e que iria secar ao natural mesmo de noite. também tentei me lembrar que a lasanha não vai estragar, e que vai dar pra almoçar depois (e deu). até dá alívio pensar que já fiz muito, mas sei bem que ainda vou me cobrar pelas coisas que não fiz depois. e se envolvem traços e gatilhos meus que não são fáceis de mudar, mas que me esforço ao máximo pra amenizar, eu posso me desapontar comigo mesma mais ainda.


quando se é uma garota neurodivergente, você não corre o risco de apenas se sentir menos bonita e atraente do que as outras garotas. você pode se sentir menos inteligente, menos capaz, menos legal, menos suficiente, menos encaixada num mundo que foi construído com base em só um modus operandi cerebral. eu tento compensar isso me afastando desse rótulo de preguiçosa que até meus pais me davam, mas isso sempre me assombra. tomar consciência de que não faço o meu melhor (na minha percepção distorcida) me faz pensar que estive sendo mais uma acomodada preguiçosa.


eu quero pensar que não está sendo em vão. quero acreditar que não é tarde pra mim. mas há pessoas que conseguem conquistar mais que eu em pouca idade. tem gente com a mesma idade que a minha já formando família. o que eu perdi, de verdade? na idade onde estou agora, já deveria ou buscar emprego ou fazer pós-graduação, e nenhuma dessas opções me interessam no momento.


eu devo ser só mais uma criança torta. mais uma tonta que não se vê realmente nessa sociedade, nas regras sociais que não me contemplam e nem me incluem. mas sou boa de margens. e talvez, não seja tão tarde assim. e também não é toda garota da minha idade que deixou legados duvidosos pra posteridade, como confundir Brito com Picasso. e definitivamente não sou essa garota. é melhor ser uma criança torta, como algum anjo besta deve ter me mandado ser.


💜 X'nO, Lilac P


fundo lilás, com o seguinte trecho em letras pretas: "eu devo ser só mais uma criança torta. mais uma tonta que não se vê realmente nessa sociedade, nas regras sociais que não me contemplam e nem me incluem. mas sou boa de margens. e talvez, não seja tão tarde assim." isso vem do texto "criança torta", que está destacado em letras brancas e contido num retângulo preto. no lado direito, está uma mulher indígena sorrindo, com vestido escuro esvoaçante com fundo de galáxia (percebe-se pela pintura geométrica típica no corpo, e pelos adereços como colar e pulseiras nas cores vermelha, amarela e preta). as margens apresentam rosas amarelas. por fim, minha assinatura está abaixo do retângulo: coração coral brilhante, X'nO, Lilac P.

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