doutor, doutor

doutor, doutor, tudo bem com você? bom, eu gostaria de uma cirurgia de troca de cérebro. é algo que você faz bem? sei que não é um pedido comum, para um cirurgião plástico que se acostumou a fazer lipo ou rinoplastia ou aplicar silicone, mas não consigo conviver mais com minha própria cabeça. nunca tive muito problema com minha aparência, mas eu acho que eu seria ainda mais bonita se fosse tão capaz e aplicada quanto as outras garotas.


doutor, doutor, você nem imagina o que passo desde nova. na escola, eu era a menina bonitinha, mas muito burrinha. eu tentava ser amiga de todo mundo, me enturmar, mas eu sempre era a piada até entre professores. eu era sempre chamada atenção pela minha dispersão, pelo fato de não parar quieta ou por minha impulsividade. eu só queria que me vissem, que me validassem, mas eu sempre era a esquisitinha, a fácil de enganar para os outros garotos. se eu fosse loira, eu seria o perfeito estereótipo da gostosa burra.


doutor, doutor, eu nunca tive muita crença em mim, e muito menos minha família. meu pai não fazia muita questão de ajudar, e minha mãe vive apontando meus erros. para ela, era inadmissível uma filha de médica e de advogado ser tão péssima na escola e em casa. sempre sou criticada pela minha organização, pois não sei onde guardo até meus sapatos. ou pelas minhas escolhas de vida, pois não me vejo tão bem nesse meio tão sistemático e organizado que minha família queria. confesso que quis ser como minha irmã mais nova. mais elogiada, dedicada, inteligente, que sabia bem o seu lugar. só que ela não vingou como minha mãe queria, pois era tão pressionada a ser perfeita quanto eu, e sua paciência tinha limites.


mas doutor, doutor, mesmo vendo esse tipo de fracasso na minha irmã, eu ainda continuo a me sentir insuficiente. eu assisto um monte de vídeo de rotina diária, e invejo essas garotas que seguem uma constância. acordar cinco da manhã, comer uma salada de frutas, arrumar a cama, seguir o cronograma de tarefas bem organizadinho num planner aesthetic, com direito a lettering bonitinha... eu não alcanço nada disso, nem mesmo uma caligrafia razoável. durmo até tarde, me alimento mal, não tenho disciplina nenhuma, e é por isso que não consigo nada na vida. só uma skin care barata e uma pilha de demissões.


ah, a pilha de demissões… ai, doutor, doutor, como eu sou péssima pra área corporativa. os mesmos traumas de infância me perseguem no trabalho. ainda sou vista como a instável, esquisita, preguiçosa e desatenta. e isso me rende desemprego. eu não sou boa pra nada. eu não sirvo pra nada. teve uma vez em que tive uma crise de choro e me olhei no espelho. eu comecei a odiar o que existia ali. uma incompetente, estúpida, imbecil, que não merecia o corpo que tinha. eu tento o melhor que posso, mas os caras vão embora quando me empolgo demais, ou quando conhecem melhor minha casa e minha vida. eles querem uma mulher bonita, mas não apenas isso. não adianta beleza quando é desleixada, fracassada, inútil e sem rumo. e me sinto exatamente assim, e por isso estou no seu consultório.


doutor, doutor, por favor, troque esse cérebro. eu quero ser inteligente como aquelas garotas da minha antiga escola, ou incrível como as blogueiras do Instagram, que têm uma produtividade e vida mais incrível ainda. eu me odeio sendo esquisita, burra e instável do jeito que sou.


💜 X'nO, Lilac P


fundo branco, com o seguinte trecho em letras pretas: "eu só queria que me vissem, que me validassem, mas eu sempre era a esquisitinha, a fácil de enganar para os outros garotos." isso vem do texto "doutor, doutor", que está destacado em letras brancas e contido num retângulo preto. abaixo, a cabeça da Barbie, cortada na testa, mostrando o cérebro em brilho de diamante. ela também chora, e está com cabeça marcada de linhas. nos cantos, mãos com instrumentos típicos de uma sessão de cirurgia, como luvas, tesoura, seringa e bisturi. por fim, minha assinatura está abaixo do retângulo: coração borgonha brilhante, X'nO, Lilac P.


*texto fictício

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