a queridinha e a muito querida

faz um bom tempo que te cortei da minha vida. eu praticamente te ignorei por um bom tempo. ainda te respeito muito, mas você não me fazia bem antes. não sei se era intencional, mas sempre sentia que eu era sempre a amiga "engraçadinha", "bobinha", "desajeitada". na verdade, eu sentia que era usada como a idiota da relação, só pra que você seja vista como a melhor, a mais esperta do rolê. foi um momento bem desconfortável de minha vida, mas que deu muito bem pra lidar, apesar dos apesares.

me lembro muito bem do quanto me sentia inferior a você. veja só, tu era a popular, a legal, a gentil. era a queridinha até pelos professores. e eu era sempre a avoada, que não se esforçava pra nada, mesmo fazendo um monte de malabarismo interno pra acompanhar uma aula simples sem incomodar (e muitas das vezes, eu falhava). você era de uma ótima ajuda... quando era pra reforçar o quão estúpida eu seria pro povo. lembro muito bem quando me disse que minha letra parecia ter levado um choque, de tão torta que era (e ainda é) a minha caligrafia. será por que sempre existe um certo relampejo constante no meu cérebro? não sei. só sei que nunca me sentia suficiente pra ninguém, principalmente pra você.

te conhecia bem. você sempre vinha com esse "mas" que me sufocava. a conversa sobre balões de ar é legal e já ouvi que é o seu grande sonho várias vezes, mas podemos mudar de assunto? sei que não precisa fazer muito pelo seu corpinho esbelto, mas poderia não devorar todo esse bolo? sei que ama devanear sobre esses milhões de pensamentos soltos na tua cabeça, mas tô cansada de te ouvir falar. esse "mas" sempre vinha com um balde de água fria. será que eu era tão demais pra você? o ápice maior do quanto eu era uma piada foi quando você jogou uma borracha em mim. levei um susto que fez a classe inteira rir. por que fez isso? estava olhando um pássaro lindo na janela ao lado. me interessava mais do que a aula de química da professora que nos odiava. quase fomos suspensas por culpa sua, pois a sua boa lábia de me despertar pra aula convenceu a coordenadora. como sempre, a queridinha escapa. e eu fiquei com a humilhação e a vergonha (e advertência).

tudo que eu queria era ser boa o suficiente pra alguém, e não me sentia considerada assim nem mesmo pela minha melhor e única amiga. isso era cruel. me fazia pensar em umas boas formas de fugir dessa vida. sim, estou falando justamente de suicídio. dramática? insensata? bom... você sempre me considerou assim, principalmente quando eu entrava em crise de choro, ou quando eu corria pra algum esconderijo, tentando escapar da vergonha ou da ansiedade. você sempre me apontava, assim como todo mundo. enrolava uma desculpa de que era pro meu bem, e todo mundo te admirava por ter paciência de Buda pra lidar com uma anta humana. entendo seu altruísmo, mas de que "bem" você estava falando? me acomodar para seu ideal de amizade? eu estive tentando me acomodar pra você e nunca dava certo! não importava o quanto eu me esforça pra me suprimir, eu deixava escapar alguma peculiaridade minha. continuava a ser a esquisita e a sempre julgada de burra.

você via com facilidade minhas tentativas falhas de me manter plena, inalterável na frente das pessoas. mas nunca viu o quanto me perguntei sobre o porquê de ser tão diferente, o quanto pedi pra ter outro jeito de ser, de agir, de me portar... tantos questionamentos e tantas preces desgastam uma alma angustiada. não aguentei segurar isso por muito tempo, e pedi ajuda. um bom tempo de terapia, uns encaminhamentos pra psiquiatria e neurologista. sim, estive passeando pela área médica enquanto você usava seu precioso tempo pra estudar pro vestibular… ou inventar algo mais pra escapar da pressão por perfeição e resultados (e juro que não te julgo por isso).

e então, depois de tanto passeio, alguém me disse que era TDAH. aquilo foi uma mão estendida no topo, que me tirou do buraco escuro onde tava. tanto tempo sendo rejeitada, julgada... pra descobrir que meu jeito esquisito tinha um nome. algo em mim me despertou uma epifania: já que nunca serei como as outras pessoas, talvez seja melhor parar de prestar atenção nelas e nem tentar mais me enquadrar. ok. não me importo mais. poderia ter ficado só nisso até uma moça me convidar a trabalhar por um tempo com ela. era dona de uma lanchonete vizinha à terapia, onde paro pra comer um pouco depois das sessões. deve ter me ouvido divagar sobre minhas tentativas de culinária. e de fato esse foi o motivo de me querer por lá, mais o conselho da minha mãe: ela queia que eu ganhasse mais confiança.

e consegui! bons dias aqueles onde passei horas inovando em doces todo mês. as pessoas realmente gostavam do que eu fazia, e cozinhar para elas me fazia muito feliz. foi
aí onde encontrei meu lugar, meu destino, minha confiança. quando ganhei uma certa quantia de dinheiro e muitas lições pra vida, deixei a lanchonete da moça com uma enorme gratidão, e segui meu plano de infância: formar minha cafeteria, com uma outra amiga que conheci por lá (um bônus). junto da minha sócia, finalmente entendi o que é uma amizade de verdade. interessada comigo e com minhas conversas, respeitosa, que dava feedback com bons motivos, em vez de me cortar com um "mas" seco. eu trazia ideias pra pãezinhos, bolos e café, e ela trazia a parte da administração e contabilidade — ainda não tô muito confiante nisso, mas estive me esforçando pra aprender, pois também precisaria de educação financeira. quando dei por mim, estava numa viagem de balão depois de cinco bem sucedidos anos de trabalho e sorrisos.

poderia não ter passado por todos os momentos ruins da minha vida, ou poderia ter o conhecimento bom do TDAH desde o início — isso teria me ajudado a valorizar melhor minha mente afiada para criatividade. só que era vital passar por essas coisas e entender que, primeiro, está tudo bem ser diferente, e segundo, que certos desconfortos te fazem crescer. posso não ser a melhor de todas. posso ser bem desorganizada, procrastinadora natural. nunca serei perfeita. ainda há quem me chamaria de estranha, desatenta, hiperativa. mas ok. estou ótima assim.

eu nunca soube o porquê de você me tratar do jeito que me tratava, e isso não me interessa mais agora. você não foi mais meu motivo de interesse desde a identificação. eu não queria mais conviver essa amizade de vitrine como antes, e você também se afastou. sinceramente, só me lembrei de você uma vez quando li em um post de alguém dizendo que você poderia estar grávida, e que talvez esse seja o motivo de se distanciar não só de mim, mas de todo mundo na escola. achei que era um boato, pois imaginava não ser possível você se descuidar desse jeito, sendo tão exemplar. dos absurdos desse tal boato foram os comentários te chamando de falsa e duas caras, de exibida e metida, que se fingia de santa e virava uma manipuladora egocêntrica, e sabiam
que ia acontecer pois dizem que você adorava validação acadêmica e masculina, que se prostituia por atenção, que deu pra macho e se ferrou, pois nem ele a quis. ué? o povo tá realmente te perseguindo por conta de um post sem provas? achava realmente que era uma pegadinha e que você só quis parar de frequentar a escola pra estudar mais. enfim, optei por esquecer isso e ir viver minha vida.

o choque de realidade veio logo quando voltei de uma viagem anos depois, e me esbarrei com o que imagino ser você. eu andava calma, e tu veio correndo. pedi desculpas mesmo sem ser minha culpa, e tive um vislumbre de seu rosto virando rápido. estava um pouco envelhecido (talvez, até um pouco mais que o meu). vi que estava de mãos dadas com uma criança que me parece ter quase sete aninhos. sou péssima em memórias, mas sou paradoxalmente boa em questionar déjà-vus de minha parte. peguei meu celular e fui atrás do seu perfil. era você mesma com seu filho. então… não era boato. no fim do ensino médio, a queridinha teve sua queda por conta de gravidez indesejada. caramba… ser humano quando estagna na sua evolução e rigidez é um porre nos seus pré-conceitos.

eu não te culpo pelo que passou. não sei o quão complicado foi sua vida depois dessa — lembro que tua mãe falava que não queria filha prenha antes de trabalhar e casar. você deve ter passado por dores e depressões muito mais complicadas que as minhas (ser rejeitada pelos garotos por conta da minha desatenção teve lá suas vantagens). mas eu torço muito que esteja bem. não quero ficar desejando ódio, quando tudo vem correndo bem pra mim, embora eu não esqueça. seria desperdício de energia remoer essas lembranças, quando posso aprender melhor com elas. não tenho muito a dizer pra você. só espero muito que seu menino esteja tendo uma mãe melhor, queridinha como sempre foi. enquanto isso, saiba que estou sendo muito querida e amada no meu lado. não precisa se preocupar mais comigo, e nem jogar sua borracha em mim ou criticar minha letra. ok que tenho essas lembranças, mas saiba que realmente torço pela sua felicidade e recomeço.

💜 X'nO, Lilac P

fundo branco, com o seguinte trecho em letras pretas: "posso não ser a melhor de todas. posso ser bem desorganizada, procrastinadora natural. nunca serei perfeita. ainda há quem me chamaria de estranha, desatenta, hiperativa. mas ok. estou ótima assim." isso vem do texto "a queridinha e a muito querida", que está destacado em letras brancas e contido num retângulo preto. ao lado esquerdo, uma garota em preto e branco se abraça, com uma borboleta colorida por cima (símbolo do ativismo TDAH). usa coroa iridescente, está rodeada de borboletas. por cima do trecho, balões de ar coloridos. por fim, minha assinatura está abaixo do retângulo: coração azul brilhante, X'nO, Lilac P.

*texto fictício

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